Radicantes

Tomografia de um cérebro normal exibindo a parte superior do hemisfério cerebral, o Neocórtex. (Dr. Giovanni Dichiro, Neuroimaging Section, National Institute of Neurological Disorders and Stroke / Fotógrafo Desconhecido)

A Guerra Neocortical

Modulação do Comportamento e a Disputa Pela Hegemonia Cultural.
Reynaldo Aragon
June 17, 2024

Antonio Gramsci apontou para que a dimensão cultural de uma sociedade é estabelecida para criar sociedades com pensamentos hegemônicos e que compartilham dos mesmos princípios. Tais princípios serviriam como base de coesão social, oferecendo uma identidade coletiva onde membros de determinadas comunidades compartilham os mesmos pontos de vista e interpretações do mundo, e como lidavam com suas realidades e afetos.

Basílica de São Pedro no Vaticano, 13 de Março, 2013 (Michael Sohn / AP)
Basílica de São Pedro no Vaticano, 13 de Março, 2013 (Michael Sohn / AP)

A guerra neocortical é onde ocorre o esforço para modular o comportamento do inimigo sem que destrua a organicidade do mesmo

Partidos, sindicatos e demais setores das sociedades de classe, já trabalhavam com a perspectiva de oferecer signos comuns a determinados grupos num processo verbal de significações e ressignificações. Tinham o potencial de reunir em torno de um mesmo objetivo sujeitos diferentes, mas que compartilham determinados aspectos de suas vidas ordinárias, como exemplo as mesmas categorias laborais. O processo apontado por Gramsci na década de 1920 foi sendo absorvido pela direita estadunidense que percebeu o potencial desta nova forma de se lidar com a sociedade e seus valores. Assumir a ideia de que travar uma guerra cultural bem articulada e estratégica, seria menos custoso para os cofres públicos e ganharia os corações e mentes das pessoas a seu favor. A mensagem recebida pelas reflexões de Gramsci, apontavam para a necessidade da recém-potência imperialista que nascia naquele momento, pós-primeira-guerra, de que era necessário ganhar o mundo através da promoção do modo de vida estadunidense pautado pelos valores do capitalismo. Nascia a direita gramsciana que começou a articular metodologias de dominação cultural que atingissem o maior número de territórios e pessoas e dessa forma conquistassem a simpatia pela sua cultura e pela forma de vida que o capitalismo dos EUA apresentavam ao mundo. Diferente de sindicatos, partidos e entidades de classes que já operam sua relação com seus filiados quase que instintivamente num processo de produção de sentidos, a nova direita gramsciana nascente tinha a seu favor o fator capital. Era preciso não somente conquistar os corações e mentes das sociedades, mas conquistar principalmente o labor de acadêmicos, jornalistas e formadores de opinião para o seu projeto de hegemonia cultural. No capítulo intitulado “Neocortical warfare? The acme of skill” de 1994, Richard Szafranski, demonstra como militares dos EUA passaram a pesquisar ferramentas do que hoje chamamos de “full spectrum dominance”, Szafranski aponta para métodos que influenciaram de forma orgânica a sociedade através da manipulação do neocórtex. Uma operação psicológica visando alterar fisiologicamente o cérebro humano, fazendo com que grandes setores da sociedade pudessem ser operados de forma conjunta O neocórtex é uma parte do cérebro humano, responsável por funções cognitivas superiores, como pensamento consciente, linguagem, raciocínio e percepção sensorial. Ele desempenha um papel crucial na nossa capacidade de aprendizado, memória e tomada de decisões. O neocórtex é altamente adaptável e pode ser modulado de diversas maneiras. A plasticidade cerebral permite que ele se reorganize e mude ao longo da vida em resposta a experiências, treinamento e estímulos. Além disso, a modulação do neocórtex pode ocorrer por meio de intervenções como a aprendizagem formal, meditação, terapia cognitivo-comportamental, exercícios físicos e o uso de técnicas de neurofeedback. Essas estratégias podem ajudar a melhorar a função cognitiva, a criatividade e a resolução de problemas, bem como a modulação do neocórtex por agentes externos pode condicionar como os sujeitos se comportam individualmente e em sociedade.

"O DoD de amanhã". Infográfico do Departamento de Defesa dos EUA. (DoD/Reprodução)
"O DoD de amanhã". Infográfico do Departamento de Defesa dos EUA. (DoD/Reprodução)

A guerra neocortical é onde ocorre o esforço para modular o comportamento do inimigo sem que destrua a organicidade do mesmo, influenciando e regulando a sua consciência, percepções e desejos. Desta forma penetrando e condicionando seus ciclos de observação, orientação, decisão e ação

General Merrill A. McPeak, Chief of Staff, United States Air Force

Além disso, o neocórtex está envolvido na regulação emocional e na formação de padrões comportamentais aprendidos. Assim, a modulação do comportamento ocorre por meio da interação complexa entre o neocórtex e outras áreas do cérebro, resultando em respostas comportamentais adequadas às circunstâncias na qual o sujeito está inserido. Com o avanço da utilização da web, ficou mais fácil e acessível influenciar as percepções, emoções e comportamentos das pessoas em larga escala. O uso estratégico da psicologia e da comunicação tem sido empregado por governos, fundações, think tanks e agências internacionais para moldar opiniões públicas, promover agendas políticas e alcançar objetivos específicos. Por técnicas como propaganda, manipulação da informação, segmentação de audiências e manipulação emocional, as operações psicológicas têm sido utilizadas para ganhar influência, conquistar apoio popular, desestabilizar democracias e governos que não atendem às expectativas do eixo de países imperialistas.

Sede da RAND Corporation em Santa Monica, California. 28 de Março de 2015 (Coolcaesar, CC BY-SA 4.0)
Sede da RAND Corporation em Santa Monica, California. 28 de Março de 2015 (Coolcaesar, CC BY-SA 4.0)

O jornalista estadunidense Walter Lippmann acreditava que uma elite intelectual esclarecida deveria desempenhar um papel central na moldagem da opinião pública e na tomada de decisões políticas. No colóquio realizado em Paris em 1938 que levou seu nome, Lippmann defendeu a ideia de que a opinião pública é moldada por uma elite intelectual, composta por especialistas e jornalistas, que filtram e interpretam a realidade para o público. Essa visão sugere uma certa desconfiança em relação à capacidade do público de tomar decisões informadas e racionais, desta forma moldando, através do jornalismo, a gênese do neoliberalismo. No período pós-segunda-guerra, em meio a segunda revolução industrial, e do desenvolvimentos das ciências como pilares da evolução das nações ocidentais, fizeram das décadas de 1920 e 1930 um período onde novas formas de se promover disputas políticas econômicas, sociais e culturais, foram pensadas e colocadas em prática. Após este período histórico, o objetivo de se garantir a soberania dos EUA no cenário internacional, passou não ser apenas via uma corrida armamentista, mas o investimento em novas armas que se mostrariam mais eficientes na guerra informacional, agregaram maiores valores ao próprio princípio de soberania e hegemonia financeira e social, principalmente para os planos dos EUA. Nesse momento a guerra cultural apontava como uma solução engenhosa e de longo prazo que não oferecia os mesmos riscos às imagens dos países belicosos perante a opinião pública local e global.

Estima-se que ao menos 800 pessoas morreram por conta de desinformação relacionada ao coronavírus durante os primeiros três meses de 2020

A comunicação 4.0, possibilitou o florescer de um campo fértil para o uso da linguagem como ferramenta de contingenciamento e condicionamento social em larga escala, a linguagem passou a trabalhar com todo seu potencial, operadas por setores interessados em mudança de comportamento e adaptações aos interesses de estados e corporações. O uso da linguagem como ferramenta de meta contingência, oferece uma relação condicional entre uma classe pré-determinada de questões ou respostas, esperando determinado tipo de comportamento como resposta. O discurso, carregado de signos e significações, são mobilizados para transformar a percepção sobre algo, desta forma ressignificando enunciados normatizados por processos históricos, como nas redes bolsonaristas, por exemplo, que apresentam versões conflitantes sobre o que foi a ditadura militar no Brasil, sobre vacinas ou mesmo interpretação da Constituição Federal. Em 2020, estudos estimaram que morreram ao menos 800 pessoas no primeiro trimestre do ano e mais 5800 pessoas foram hospitalizadas por conta de informação falsa disseminada em redes sociais. Estas práticas demonstram como os grupos bolsonaristas responsáveis pela produção e engajamento de conteúdos nas redes, por processos cognitivos de significações, impulsionam significantes vazios, estes próprios do discurso populista, para desta forma estabelecendo como estratégia, por exemplo, o negaciosismo histórico sobre os fatos.

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), discursa em conferência de imprensa após reunião do comitê de emergência contra o novo coronavírus na China na sua sede em Geneva, Suíca. 22 de Janeiro, 2020 (Xinhua/Liu Qu)
Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), discursa em conferência de imprensa após reunião do comitê de emergência contra o novo coronavírus na China na sua sede em Geneva, Suíca. 22 de Janeiro, 2020 (Xinhua/Liu Qu)

O que vimos acontecer no Brasil e em outros países do mundo, após o início da segunda década do século XXI, chamou a atenção de jornalistas, estudiosos e políticos de todo o mundo, relacionando o papel das operações psicológicas às mudanças ocorridas em suas democracias. No Brasil a agenda de combate a corrupção foi estabelecida como forma de ressignificar no seio da sociedade, o que o governo dos partidos dos trabalhadores havia colocado em prática no que dizia respeito a políticas públicas. Mídia mainstream, fundações, think tanks, mídias independentes e toda sorte de canais de informação passaram a difundir informações que atendessem a essa agenda e que de alguma forma pudessem colaborar para a desestabilização de um governo com altos índices de aprovação e de desenvolvimento social, econômico e científico. O Brasil de 2023 reflete de forma notável os sintomas desta guerra cognitiva em que partes deste quadrante ocidental estão submersos, a relativização da realidade objetiva, reflexos de uma sociedade egoica e imersa na mais profunda dissonância cognitiva.

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