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Vazamento do Nord Stream 1 em 28/09/2022 (Kustbevakningen — Guarda Costeira da Súecia)

Petrobrás: Um Caso de Soberania Tecnológica

Frente aos recentes ataques ao Nordstream e à Huawei, quais são os riscos enfrentados pela estatal brasileira no cenário geopolítico?
Eden Cardim
May 6, 2024

Em maio de 2019, durante o governo do então presidente Donald Trump, que fazia campanha aberta contra a China nos campos político e econômico, o Departamento de Comércio dos EUA adicionou a gigante da tecnologia chinesa Huawei Technologies a uma lista de sanções comerciais por supostas preocupações de segurança com os dados de seus cidadãos, a segurança interna e os interesses da política externa dos EUA. Antes da posse de Joe Biden no início de 2020, Donald Trump elevou o tom contra a República da China e aprovou uma derradeira leva de sanções contra a Huawei.

Nelas, constava o impedimento de que fornecedores estadunidenses negociassem seus produtos e serviços com a bigtech chinesa, revogando pedidos feitos anteriormente e impedindo que as empresas estadunidenses emitissem novas licenças para a Huawei. À época a Huawei acusava o governo dos EUA de não estar preocupado com a segurança, mas com o crescimento exponencial da Huawei no mercado global de tecnologias, conquistando uma grande fatia do mercado que antes era dominado por empresas americanas, como no caso da Apple e de países-parceiros, como no caso da sul-coreana Samsung.

Um dos golpes mais fortes das sanções estadunidenses contra a empresa foi a proibição da Oracle de fornecer para a Huawei seu sistema ERP - da sigla em inglês para “sistema de planejamento de recursos empresariais”. Os sistemas ERP são responsáveis por toda a cadeia de produção e gestão de uma empresa, sendo utilizados para gerenciar atividades de negócios diárias: contabilidade, compras, gerenciamento de projetos, gerenciamento de riscos, etc. Toda a gestão de grandes empresas é feita pelo ERP. Assim, caso o software não funcione, a empresa ficará parada. Refém de softwares desenvolvidos por empresas multinacionais e exposta às sanções político/comerciais de seus respectivos países-sede, a Huawei se viu em uma situação delicada, impedida de manter suas operações por motivos externos. O objetivo do governo Trump, e posteriormente do governo Biden, era interferir na soberania comercial chinesa através de retaliações a suas empresas e negócios pelo mundo, escalando a “guerra comercial" contra a China e suas empresas. Interromper o fornecimento de produtos, serviços e suprimentos a empresas chinesas foi a estratégia utilizada por Trump e Biden para tentar desacelerar o crescimento da economia do gigante asiático e em particular, frear o avanço da Huawei no desenvolvimento de tecnologias e obtenção de patentes relacionadas à tecnologia 5G, das quais hoje a maior fatia pertence à Huawei, desta forma criando um enorme obstáculo ao seu crescimento, que ameaçava o poder hegemônico exercido pelos EUA. Impedida de utilizar o sistema ERP da Oracle, a Huawei se viu obrigada a buscar soluções, apostando num caminho que garantisse soberania sobre suas operações, desenvolvendo ela mesma seu próprio sistema de planejamento de recursos empresariais, o “MetaERP”. "Sobrevivemos!", disse Tao Jingwen, presidente do departamento de qualidade da Huawei, em evento na China em abril de 2020 no lançamento oficial do software. O desenvolvimento do MetaERP foi considerado o maior e mais desafiante projeto de desenvolvimento que a Huawei já havia feito, uma empreitada cujo objetivo era garantir a soberania sobre seus processos produtivos e desta forma não ficar refém de empresas multinacionais.

"Sobrevivemos!"

No caso da Huawei em específico, por se tratar de uma grande empresa chinesa, as sanções não objetivam apenas atingir a empresa, mas a própria economia chinesa e seu modelo de negócios e regramentos comerciais. A forma como a China regula seu mercado interno e estabelece suas regras comerciais torna-se um problema a parte para o capitalismo ocidental do século XXI, sustentado pelas regras do livre mercado como gênese do neoliberalismo. A Huawei é uma empresa privada, fundada em 1987 por Ren Zhengfei, que segue a regulação proposta pelo governo Chinês. Em 2021, a Huawei pagou a funcionários e aposentados da empresa com um valor total de 9,65 bilhões de dólares em dividendos. Cerca de 131.507 trabalhadores e ex-trabalhadores foram beneficiados pelo modelo cooperativo da empresa, conforme o relatório anual de 2021 da empresa, sendo assistidos pela divisão de lucros da empresa, elegíveis para receber os dividendos, cada um recebendo em média U$ 73.000,00, de bonificação naquele ano, para além do salário.

Cerca de 131.507 trabalhadores e ex-trabalhadores foram beneficiados pelo modelo cooperativo da Huawei

Vê-se, portanto, que o socialismo de mercado chinês incomoda para além do potencial comercial e produtivo. O modelo de negócios e a forma como grandes empresas chinesas seguem as regras do Estado seriam um péssimo contra-exemplo para o mercado ocidental, que vive uma crise do modelo neoliberal, principalmente no setor de tecnologia, promovendo ondas de precarização e demissões em massa. O caso da Huawei é um exemplo de fácil compreensão da necessidade de grandes empresas e governos pensarem de forma estratégica o emprego da tecnologia em todos os setores da economia produtiva de seus países, buscando o desenvolvimento de tecnologias que permitam autonomia nas relações comerciais. A autonomia comercial e o poder econômico e político da China possibilitam que o país invista pesado em tecnologias, principalmente a de software, e modelos de negócios que garantam soberania comercial, política e econômica. Como no Brasil, a grande maioria dos países em desenvolvimento não tem capacidade de grandes investimentos em projetos que ofereçam segurança de seus processos produtivos, justamente porque os setores críticos como o mercado de ERP está ocupado por multinacionais estrangeiras, muitas vezes ficando dependente de tecnologias produzidas por multinacionais e que ficam expostas aos interesses comerciais de seus governos, como no caso da Oracle.

Em 2022 a Petrobrás fez a conversão do seu sistema integrado de gestão, do SAP ECC para o SAP S/4HANA, o novo sistema alinhado ao plano estratégico da empresa para quadriênio 2022/2026, objetiva a atualização de suas ferramentas de tecnologia e informação. Segundo nota da Associação Brasileira de Empresas de Software (ABES), “O objetivo do projeto engloba a otimização, digitalização e revisão seletiva de processos financeiros, corporativos e de negócio da Petrobras, alinhado às melhores práticas de segurança da informação e à busca de melhor experiência de uso da solução. O projeto foi realizado em colaboração entre as empresas Deloitte, SAP e Microsoft.”

"O projeto foi realizado em colaboração entre as empresas Deloitte, SAP e Microsoft.”

A pergunta que fica com o investimento da principal estatal do país em inovação, em parceria com umas das maiores empresas multinacionais do planeta, é: o que pode ser feito para se promover políticas públicas em tecnologias que atendam as perspectivas da soberania da gestão de dados sensíveis da infraestrutura nacional? Lembremos que figuras com o Larry Ellison, fundador e diretor técnico da Oracle e com envolvimento direto com a CIA e o Departamento de Estado dos EUA, Elon Musk da Tesla e Starlink e Steve Ballmer da Microsoft, são exemplos de personalidades conhecidas do mercado global de tecnologia e sofrem influências diretas de seus governos.

A Deloitte é uma empresa inglesa, fundada em 1945 em Londres e líder global em serviços que abrangem Auditoria, Consultoria, Assessoria Financeira, Risk Advisory e Consultoria Tributária, bem como serviços relacionados. Ou seja, todos os processos de integração, como finanças, recursos humanos, produção, compras e venda, automatização dos processos produtivos e administrativos, fluxos de produção, comunicação interna, estratégias, negócios, atendimento e processos de inovação, estão todos nas mãos das principais multinacionais de tecnologia do mundo, como no caso da alemã SAP e da estadunidense Microsoft, além da Deloitte.

Vale lembrar que a Alemanha, país-sede da empresa SAP, parceira tecnológica de primeira hora da Petrobras, permitiu que o Nord Stream II, parceria entre Rússia e Alemanha, fosse destruído em nome dos interesses dos EUA na disputa comercial com o eixo China/Rússia. Em meio a um mundo em transformações profundas, onde as disputas hegemônicas em torno de fontes energéticas se intensificam, o que tais empresas poderiam fazer com os dados e o sistema de gestão da Petrobrás, por exemplo?

A Petrobras tem sido uma empresa-líder em tecnologia de exploração e produção de petróleo em águas profundas. A empresa desenvolveu tecnologias inovadoras para enfrentar os desafios únicos apresentados pela exploração em águas profundas, especialmente na camada pré-sal, que é uma das maiores descobertas de reservas de petróleo nas últimas décadas. Alguns pontos notáveis sobre as tecnologias desenvolvidas pela Petrobras incluem:

  • Tecnologia de Perfuração: A Petrobras investiu em tecnologias avançadas de perfuração para alcançar as profundidades onde as reservas de petróleo se encontram, muitas vezes superando os 2.000 metros de lâmina d'água;
  • Recuperação Avançada de Petróleo: A empresa desenvolveu métodos avançados de recuperação de petróleo para otimizar a extração das reservas, maximizando a produção e prolongando a vida útil dos campos petrolíferos. Tecnologias Submarinas:
  • A Petrobras utiliza sistemas submarinos avançados, como árvores-de-natal molhadas (Wet Christmas Trees), que controlam a produção dos poços submarinos;
  • Sistemas de Monitoramento Remoto: A empresa implementou sistemas de monitoramento remoto para controlar operações em tempo real, garantindo eficiência operacional e a rápida identificação de qualquer problema.

A atenção internacional para as atividades da Petrobras em águas profundas se deve ao potencial significativo das reservas encontradas no pré-sal e ao pioneirismo da empresa no desenvolvimento de tecnologias para explorar essas reservas. O sucesso da Petrobras nessas operações despertou interesse de outras empresas petrolíferas e investidores ao redor do mundo. A operação Lava-Jato e a campanha de ódio contra o governo desenvolvimentista de Lula e Dilma foram a forma como os interesses internacionais desestabilizaram a empresa na última década. Desse modo, por meio de privatizações e parcerias publico/privada, tiveram acesso à tecnologia nacional de prospecção desenvolvida no Brasil.

Quando falamos sobre os setores de tecnologia e energia, falamos sobre setores estratégicos no desenvolvimento de uma nação, fundamentais para suas soberanias, garantindo autonomia e segurança para investimentos sociais e infraestrutura de longo prazo. Nos últimos anos os conflitos por reservas de petróleo vem se intensificando, exemplos como as disputas comerciais no Oriente Médio, assim como os conflitos na Palestina, Ucrânia, Líbia e Sudão. A Huawei demonstra como empresas estratégicas podem sofrer ataques coordenados de governos e empresas multinacionais, a operação lava-jato é o exemplo mais claro de como as guerras contemporâneas operam baseadas em estratégias diversificadas que não o fogo das armas. A Petrobrás, ocupando uma posição crítica no mercado global de energia fóssil, pode ser vítima das políticas de sanções dos países do eixo ocidental em meio a um mundo conflagrado. A guerra contemporânea é acima de tudo informacional, baseada em modelos de persuasão cognitivo-comportamental, muito bem operadas pelos grandes ecossistemas ocidentais de informação. Em um mundo onde a guerra informacional, pautada em inovação e tecnologia, se apresenta como o principal campo de batalha da contemporaneidade, o princípio da soberania informacional passa a ser fundamental para a defesa dos interesses nacionais e dos povos. A soberania sobre a informação começa por políticas públicas estratégicas e com investimentos altos em inovação e tecnologia, não é possível que nossas empresas estatais e seus dados fiquem nas mãos de empresas internacionais que operam dentro do mercado global.

Empresas estratégicas do ponto de vista operacional brasileiro, como no caso da brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP) e a TELEBRAS são exemplos do comprometimento da soberania informacional através de contratos que não garantem a segurança necessárias para atuarem com autonomia.

Utilizar a estrutura das universidades públicas, aproveitando a qualificação do pesquisador brasileiro, é um dos caminhos a ser seguido para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à circulação da informação no Brasil. É preciso mobilização para que o governo atenda as expectativas de política soberanas de dados e da informação circulante no país, com especial atenção aos dados de nossas estatais que possam garantir autonomia ao país.

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