Radicantes

USS George Washington na Baía de Guanabara 2024 (J. Pereira, acervo pessoal)

Diplomacia Canhoneira 4.0

A tradição colonial que ressuscitou na era das redes sociais em meio à guerra comercial dos EUA com a China
Eden Cardim
May 23, 2024

Em toda a história do imperialismo moderno, as grandes embarcações estiveram presentes. Foi numa grande frota da época que os primeiros colonizadores do Brasil chegaram ao continente no século XVI. A visão de tamanha façanha de engenharia naval criava um choque de realidade nos povos originários que as avistavam pela primeira vez.

De onde vinham essas monstruosidades marítimas? Seriam Deuses que vieram visitar? O que queriam? Chegaram para ficar? Como seria a convivência com elas? Desde então, essas perguntas ressoam simultaneamente nas populações do sul global quando veem uma embarcação ultra-tecnológica de grande porte se aproximando.

Não à toa, George Lucas, escolhe abrir a franquia Star Wars com a cena de um imponente Destroyer exibindo sua supremacia a uma nave menor. Em 5 segundos de filme, torna-se clara a relação entre o Império Intergaláctico e a Aliança Rebelde: uma relação de dominação.

Das caravelas portuguesas, passando pelos couraçados da era vitoriana, até os porta-aviões nucleares contemporâneos, as demonstrações de superioridade em tecnologia naval viriam a se tornar símbolos de força e permeiam o imaginário da humanidade em todos os aspectos, no cinema, na política, nas guerras e na diplomacia: o chauvinismo dos dominantes e a submissão dos dominados.

USS Mississipi Suydam Collection MSS 1394015 (McPherson & Oliver, Baton Rouge)
USS Mississipi Suydam Collection MSS 1394015 (McPherson & Oliver, Baton Rouge)

Em 1853, o comodoro da marinha dos EUA, Matthew Perry, navegou com sua frota composta de quatro fragatas a vapor: Mississipi, Plymouth, Saratoga e Susquehanna. Sua missão era estabelecer relações diplomáticas com o Japão e negociar a abertura dos portos ao comércio norte-americano. As embarcações com destino ao oriente, que chegavam do ocidente, tinham os cascos habitualmente pintados de preto com piche, um impermeabilizante que aumentava a resistência da embarcação à jornada, o que lhes renderam a alcunha de Black Ships.

Os barcos de Perry não foram pintados de tal forma, mas soltavam fumaça negra da queima do carvão de seus motores a vapor, uma façanha de tecnologia à época. As fragatas eram equipadas com canhões Paixhans, os primeiros na história da indústria naval a disparar munição explosiva, projéteis que causavam muito mais dano do que os antiquados canhões utilizados por Hernán Cortés na destruição da civilização asteca.

Os motores a vapor também permitiam que os Black Ships de Perry operassem manobras táticas muito superiores às capacidades da obsoleta frota japonesa. Quando foram cercados por patrulheiros na baía de Edo, Perry desviou dos interceptadores japoneses, acelerou até a capital e apontou suas armas para a cidade de Uraga. Eles então dispararam tiros de festim dos 73 Paixhans a bordo da frota, alegando ser uma comemoração em homenagem ao dia da independência dos EUA.

Em poucos dias o Shogun Tokugawa Ieyoshi pôs fim aos 200 anos de isolamento japonês e abriu os portos. Esse acontecimento marca a primeira instância da política diplomática que seria conhecida como Diplomacia Canhoneira, quando se utiliza superioridade tecnológica naval para se atingir objetivos diplomáticos: era muito mais eficiente investir na exibição de alta tecnologia nos mares para impor demandas diplomáticas pacificamente, do que arriscar o início de um conflito armado.

Theodore Roosevelt e o "Grande Porrete" no Caribe 1904 (William Allen Rogers)
Theodore Roosevelt e o "Grande Porrete" no Caribe 1904 (William Allen Rogers)

"fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete"

Apenas 8 anos depois da expedição de Perry, eclodiu a guerra civil dos EUA, período em que foram feitos enormes investimentos, principalmente dos ianques, em tecnologia naval, que foram decisivos no triunfo sobre os confederados. Em apenas 50 anos, a marinha norte-americana saltou das fragatas de madeira aos couraçados de aço com hélices e múltiplos motores, culminando em façanhas navais como o Titanic e na Grande Frota Branca, apelido dos 16 couraçados que circunavegaram o mundo, levando a bordo a diplomacia canhoneira. O presidente Theodore Roosevelt ficou conhecido pelo seu estilo de diplomacia denominada de Big Stick. Ele havia se apropriado de um provérbio africano: "fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete"

Com essa frota, Roosevelt garantiu aos EUA uma influência duradoura sobre os países da América Latina, principalmente na América Central. Foi a Grande Frota Branca que interferiu na política da Colômbia, garantindo a independência do Panamá, para que o canal fosse construído. A frota não disparou um tiro sequer, sua mera presença na região foi suficiente.

USS Theodore Roosevelt (CVN 71) em trânsito no Oceano Pacífico (United States Navy )
USS Theodore Roosevelt (CVN 71) em trânsito no Oceano Pacífico (United States Navy )

O canal do Panamá veio a se tornar uma das principais vias navais do ocidente, por onde passam 5% do comércio marítimo global e 40% do tráfego de carregamentos dos EUA. Desde então, a hegemonia naval norte-americana nunca foi realmente ameaçada, nem mesmo durante a guerra fria, até que encontrou pela frente o vertiginoso crescimento industrial da China. A indústria automobilística estadunidense não gozou do mesmo sucesso que sua indústria naval. O fordismo, após um breve período de sucesso comercial, foi rapidamente desbancado pelo toyotismo japonês e depois pelo socialismo de mercado chinês. As décadas de investimento da China em carros elétricos e tecnologias de bateria agora apresentam um novo desafio à maior economia do planeta, totalmente baseada em combustíveis fósseis. A transição do carvão das fragatas de Perry à energia nuclear do USS George Washington e ao lítio necessário para a fabricação de baterias fez surgir uma nova forma de conflito, bem mais branda do que os conflitos sangrentos da era vitoriana: a guerra comercial com a China. Nessa guerra, poucos tiros são disparados, não há conflito aberto e surge novamente a utilidade da diplomacia canhoneira na América Latina, visando estancar a expansão do gigante asiático no sul global.

"60% do lítio global está nessa região"

Objetivo confirmado na declaração dada pela general Laura J. Richardson, líder do Comando Sul dos Estados Unidos em 2022: “...essa região é muito rica em recursos. É uma riqueza 'fora dos gráficos'. E eles têm muito do que se orgulhar. E os nossos competidores e adversários também sabem o quão rica é a região em termos de recursos. 60% do lítio global está nessa região. Você tem petróleo bruto pesado. Você tem petróleo bruto doce. Você tem metais de terras raras. Você tem a Amazônia, que é chamada de 'Os Pulmões do Mundo'. Você tem 31% da água potável do mundo aqui nessa região. E há adversários que estão se aproveitando dessa região todo santo dia, bem na nossa vizinhança. E vejo o que acontece nessa região em termos de segurança, impactos na nossa segurança, nossa segurança nacional, no ‘Homeland’ e nos Estados Unidos...”

Comentários em vídeo do USS George Washington no Instagram, acesso em 23/05/2024
Comentários em vídeo do USS George Washington no Instagram, acesso em 23/05/2024

Segundo comunicado da Embaixada e Consultados dos EUA no Brasil, a general comanda a operação Southern Seas 2024 a bordo do porta-aviões USS George Washington em comemoração aos 200 anos de relações diplomáticas entre o Brasil e os EUA. Na segunda-feira (20/05/2024) a embarcação atracou na baía de Guanabara ostentando suas 100 mil toneladas de diplomacia. Também segundo o comunicado, a comandante Laura “participará de um painel de discussão sobre a integração de mulheres em missões de paz, defesa e segurança, enfatizando a importância da inclusão e da diversidade na segurança global.” O comodoro Perry, a comandante Laura Richardson e o presidente Theodore Roosevelt tem em comum a mesma mentalidade imperialista da exibição de superioridade tecnológica como método para impor objetivos diplomáticos.

O USS Theodore Roosevelt, um porta-aviões da classe Nimitz, a mesma do USS George Washington, talvez seja um símbolo da persistência de sua política: “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete”. Partindo do Estado da Virgínia, onde enfrentava diversas dificuldades com a tripulação, inclusive uma série de suicídios, Laura Richardson, partiu rumo ao litoral do Japão, o mesmo destino de Matthew Perry. O navio da comandante agora ostenta tecnologias com as quais o comodoro não poderia nem sonhar no século XIX. Sua chegada ao Rio de Janeiro causou profunda comoção entre os que viram a imponência da embarcação, tanto presencialmente quanto nas redes sociais, evocando todo tipo de sentimento.

"Não dá pra mandar uns 2 jatos derrubar o prédio do STF daí não?"

Alguns questionam o motivo da sua presença, outros, em número preocupante, pedem ajuda para um golpe militar, e ainda outros reforçam a inferioridade das forças armadas frente à façanha de tecnologia naval que atravessou a elevação da ponte Rio-Niteroi. Jornais noticiam, maravilhados, o poder do navio.

O porta-aviões é equipado com dois reatores nucleares, que garantem 20 anos de operação sem necessidade de reabastecimento. É capaz de transportar mais de 80 aeronaves, incluindo caças, aviões de ataque, aeronaves de reconhecimento e helicóptero. Porém, com o advento dos mísseis balísticos de longo alcance, mísseis hipersônicos e drones, a utilidade militar dos porta-aviões nas guerras contemporâneas não representa a mesma superioridade que a Grande Frota Branca de Theodore Roosevelt, mas ainda causam o mesmo efeito das caravelas de Pedro Álvares Cabral e se colocam como um instrumento muito eficaz, dessa vez na guerra contemporânea das redes e da informação.

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